quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

“Todo músico precisa descobrir a alma do poeta”, revela maestro


Ricardo Datrino

Colaboração para o Diário de S. Paulo

Aos 71 anos de idade, o aclamado maestro e pianista, João Carlos Martins, é um exemplo de superação e dedicação ao trabalho artístico. Martins tem uma trajetória singular ao ter passado por diversos problemas de saúde, entre eles uma lesão em um nervo da mão direita – em um ataque sofrido em assalto na Bulgária, quando realizava um concerto - e um tumor na mão esquerda, que o obrigaram a reencontrar uma maneira nova de entender a música. Em entrevista ao Diário de S. Paulo, o maestro destaca a importância dos trabalhos sociais desenvolvidos, a escolha de sua biografia como enredo da escola de Samba Vai-Vai e do filme sobre sua história de vida que deverá estrear em 2012.

Como tem sido o trabalho de cunho social com o objetivo de garimpar possíveis talentos musicais?

Quando recomecei a vida, com 64 anos, como maestro, decidi procurar excelência musical aliada à responsabilidade social. Com isso, comecei um trabalho com 45 jovens de 16 anos da periferia procurando sempre pessoas interessadas em música. Neste período, ao mesmo tempo, a Orquestra Filarmônica Bachiana se apresentava em inúmeros lugares em São Paulo. Acabei, aos poucos, formando uma orquestra jovem de meninos. Hoje, o projeto chega a 1,5 mil crianças estudando música. Enquanto isso, fomos acompanhando também a evolução da Orquestra Bachiana Filarmônica, que estava em alta, e foi a primeira orquestra brasileira a se apresentar no palco do Carnegie Hall, em Nova York. Mas vendo a evolução de ambas as orquestras, já no ano passado, os jovens ficaram tão bons que decidi juntar a orquestra profissional e a Orquestra Filarmônica SESI SP, formada pelos jovens. Em 19 de setembro deste ano foi nosso auge, quando a orquestra única abriu a temporada em Lincoln Center, na cidade de Nova York, para 2,8 mil pessoas e também realizou a abertura da Conferência das Organizações das Nações Unidas, também em Nova York. Foi um momento mágico e fomos muito aplaudidos. Uma homenagem em Nova York é muito expressiva e emocionante para qualquer artista de qualquer lugar do mundo.

O senhor desenvolve ainda outras atividades...

Criei recentemente o projeto “O Brasil é uma Orquestra”. Começo escolhendo 45 jovens em cada estado brasileiro, baseado no exemplo da minha orquestra. No final de um ano, os 26 estados brasileiros terão 45 jovens tocando a mesma peça regida pela internet simultaneamente em um telão. Daqui há 10 anos estarei com 80 anos e perceberemos que cerca de mil orquestras serão formadas no país. Precisamos criar esse estímulo tendo em vista os países emergentes. Dentre esses países, a China ganhou a liderança no desenvolvimento e massificação cultural. Se os outros países emergentes não acompanharem o que a China está fazendo haverá um abismo. Os diamantes que tocaram comigo estão prontos para tocar em qualquer orquestra do mundo e isso deve ser estimulado.

Qual a maior dificuldade ao “talhar o diamante”?

Você deve chegar para a criança e perguntar quanto tempo ela pode estudar por dia. Qualquer período de tempo que ela disser está bom para o músico. Se ele disser 20 minutos, está bom. A partir daí, criamos uma disciplina e em nenhum dia essa criança estudará menos ou mais do que os 20 minutos estabelecidos por ela. Logo, ela vai dizer que quer aumentar esse tempo para 40 minutos, por exemplo. O estímulo é desenvolvido pela paixão ao que se faz. Hoje, todos meus alunos estudam no mínimo 3h50 e no máximo 4h10. O primeiro passo é criar disciplina, o segundo passo é criar a alma do poeta. E isso se consegue apenas com amor à música. Neste ano, chegarei aos 200 concertos e sempre o que penso é em estimular o espírito do artista.

O Jean William [jovem tenor paulista] descoberto pelo maestro João Carlos seria esse talento que tem a alma alimentada...

Sim. No dia 21 de dezembro, levarei esse jovem talento para começar a estudar no Scala de Milão, na Itália. Ele deverá fazer história no Brasil e ser um dos sucessores naturais do Pavarotti. Brinco com ele, mas peço calma. Tenho também um “diamante” estudando no New York University, que toca violoncelo, e outros mais. Isso se chama momento certo na hora certa. O cantor Jean William, que vai para o Scala de Milão, ganhou uma bolsa de U$ 42 mil por ano para estudar e torço pelo sucesso e os sonhos dele.

Como o samba enredo da Vai-Vai em sua homenagem tem impactado na vida do maestro?

Quando lancei o Jean William cantando ópera junto à bateria da Vai-Vai, apareceu a ideia do samba enredo da escola para o ano que vem. Em evento que reuniu o atual ministro da Cultura [Juca Ferreira], comentei sobre a escola fazer um enredo baseado na música clássica. Naquele instante, percebi que a expressão musical está alcançando a democracia dela. Ela está conseguindo atingir todos os segmentos. Quando ouço o samba unido à música clássica vejo que algo está certo. O trabalho é junto das comunidades carentes e morros e a música passa por todas as classes.

Qual a sua análise sobre os trabalhos sociais que envolvem música erudita na comunidade de Heliópolis?

Tenho muito respeito pelo trabalho realizado em Heliópolis. É maravilhoso, mas quando a orquestra sinfônica viaja trata-se de uma orquestra em Heliópolis e não da comunidade porque há vários profissionais dentre os jovens que estão iniciando. O projeto é bárbaro. Eles têm uma sede, educam os garotos, a orquestra possui músicos da favela, mas não são 70 músicos apenas da favela.

Qual ganho a música teve com seus trabalhos junto aos internos da antiga FEBEM, atual Fundação Casa?

Há uma cena em um vídeo que gravei que me emociona muito, de um jovem que recebeu a liberdade em uma segunda-feira e disse ao pai que ficaria preso mais 3 dias para poder dizer obrigado pela música ter transformado sua vida. É emocionante. Trabalhei com sete diamantes da FEBEM, que já saíram e no Natal passado mandaram cartas para a Casa agradecendo pela dedicação. É a possibilidade da inclusão pela música.

Em breve um filme será lançado sobre a sua biografia...

Vou ficar bonito mesmo com 71 anos, já que o Rodrigo Santoro irá fazer um filme interpretando a minha vida. Será uma produção norte-americana do diretor Bruno Barreto, mas não há data definida para estreia. Ele irá contar minha vida dos 20 aos 63 anos. As filmagens devem começar em outubro de 2011. Embora eu seja suspeito para dizer que será muito bom (risos).